Influência da espiritualidade no enfrentamento do luto em tempos de pandemia.

foto da Renata, autora do texto.



sou andante. Aprendiz e duvidante. Sendo essa, uma constante que me faz ser fraca e forte. Nessa vida eu quero sorte, mas também quero aprender que somos fortes quando não tememos o viver.

Resumo

Neste artigo, a autora visa relatar o enfrentamento da vivência do luto durante a pandemia da covid/19, apontando a espiritualidade como uma das ferramentas de superação deste momento delicado e difícil, que uniu a humanidade num único objetivo: o de superar o medo, a dor e perda. A atenção da autora volta-se para o fato de que a presença tão fundamental para a cura, durante a pandemia, não foi possível por conta dos protocolos estabelecidos para evitar a disseminação do vírus. Assim, foi imprescindível para o atravessamento deste momento, cultivar a espiritualidade para retornar ao cotidiano com mais sentido e esperança.

Palavras-chave: Espiritualidade. Luto. Pandemia. Enfrentamento.

Riassunto

In questo articolo l’autrice intende raccontare l’atto di dover far fronte all’esperienza del lutto durante la pandemia di Covid-19, additando la spiritualità come uno degli strumenti per superare questo momento delicato e difficile che ha unito l’umanità in un unico obiettivo: superare la paura, il dolore e la perdita. L’attenzione dell’autrice si sposta sul fatto che la “presenza” in quanto elemento fondamentale per la cura, durante la pandemia non è stata possibile a causa dei protocolli stabiliti per prevenire la diffusione del virus. Quindi, per attraversare questo momento e tornare alla vita di tutti i giorni con più senso e speranza era fondamentale il coltivo della spiritualità. 

Parole Chiave: Spiritualità. Lutto. Pandemia. Affrontamento. 


Introdução

A decisão para abordar o tema espiritualidade e pandemia partiu do pressuposto de que, embora sendo um assunto bastante conhecido, o tema espiritualidade se faz cada vez mais urgente na sociedade contemporânea, uma vez que todas as pessoas, e a criação inteira, têm em si espiritualidades. Esta consciência de que há espiritualidade em todos os seres vivos e na criação já se apresenta para nós em gênesis, quando ao narrar o poema da criação diz-se: “que exista luz!” (Gn, 1,3) Esse chamado à luz está carregado de sentido e de existência, pois o espírito é luz.

A partir desta lógica, é possível compreender que a espiritualidade pode ser um caminho que dá sentido à existência humana, porque o próprio ser já tem dentro de si esta ideia de busca e sentido da vida que se apresenta desde o momento em que ele toma consciência da realidade que o cerca. Assim sendo, podemos ainda afirmar que “que exista luz“. é uma convocação para que também a existência seja luz, logo, deixe resplandecer em si, e através de si, a própria luz.

Quando falamos de espiritualidade, faz-se mister conhecer o significado deste termo, atualmente em uso por muitas áreas. Seja nas ciências ou nas religiões, o termo espiritualidade tem ganhado “mercado” e ocupado um lugar significativo no campo de várias práticas profissionais que prometem a “cura”. Segundo o pensamento da autora que segue:

Considera-se a espiritualidade como um fenômeno de intimidade, de relacionamento com o transcendente, no qual há uma busca diária, voluntária e prazerosa de autoconhecimento e do conhecimento do Outro. Esse conhecimento leva o indivíduo a uma consciência de si, das suas competências e limitações (MANO, 2010, p. 15).

A espiritualidade está para além da religião, ela acontece na inter-relação do eu com o eu, do eu com o outro. Vai fortalecendo-se na medida em que o sujeito descobre que, em si, existe outra dimensão que necessita ser alimentada e cuidada para vir a ser. Espiritualidade é força, é energia, é dom. É algo que está no universo e que perpassa todas as realidades, tornando-nos Um com Todos. A espiritualidade se faz, sobretudo, na experiência com o transcendente que habita em cada um, mas se fortalece à medida em que se conecta com o outro.

Espiritualidade na pandemia

A pandemia da covid/19, como em outras epidemias que aconteceram na história da humanidade, assolou inúmeras vidas. Este fato contribuiu, de forma que as pessoas em seu isolamento, e por tantos outros fatores, apresentaram-se difíceis de serem suportados neste momento em que a humanidade inteira se depara na luta contra um vírus letal, a buscar mecanismos de enfrentamento para compreender e suportar viver esta nova realidade.

Viver numa sociedade pandêmica, isolado de todos os que amamos, possibilitou ao sujeito realizar uma viagem introspectiva, onde o medo de perder alguém estava em conflito com o próprio medo de morrer. Foram dias difíceis e sombrios. Em qual parte encontrar luz para seguir? Será que ainda existe esperança de sair desta situação de morte e de dor? Para seguir adiante é necessário buscar apoio em algo que seja da ordem do transcendente, pois só a ciência não consegue dar respostas ao caos que se instalou dentro de cada pessoa. É preciso desenvolver e fortalecer a dimensão espiritual, pois a mesma:

A religiosidade e espiritualidade constitui-se como dimensão que atua nos aspectos subjetivos das pessoas, oportunizando conforto e amparo diante de situações difíceis, cria condições para o enfrentamento de momentos de crise e auxilia na elaboração de aspectos que são complexos de serem compreendidos e solucionados de forma concreta (P. 7).

A partir desta visão que se coloca, seria possível deduzir que a espiritualidade, como uma dimensão que existe em cada sujeito, tornou-se fundamental em todo processo de enfrentamento dos dias difíceis da pandemia da covid/19 e também na vivência do luto. Uma vez que o luto ainda está a ser elaborado por muitos, visto que, na pandemia, a despedida daqueles que partiram foi difícil, dada os protocolos a serem seguidos para evitar-se o risco de disseminação da doença.

Luto do invisível

Através dos estudos do curso de Tanatologia, compreendeu-se que o luto é um processo e que todos os seres (aqui incluímos também os animais) vivem o luto. Para Freud, “O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, como país, liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante” (p.249). O luto está intrínseco à condição do ser. Faz-se luto por algo ou por alguém que se perdeu. Ao nascer, o infante faz o luto do ventre materno. É o aconchego, a segurança que se perdeu para vir à luz. Faz-se luto das células que o corpo perde a cada dia. Faz-se luto ainda de vidas não vividas e de situações não compreendidas.

Durante a pandemia, também fomos acometidos pela dor de chorar sem poder tocar e nem ver. Não enxergar o ente querido no caixão despertou, em muitos, um processo de luto complicado. O luto complicado acontece sempre quando não é possibilitado para o sujeito o entendimento e a vivência da situação incompreendida a qual se vive. Segundo o que diz a literatura, por mais difícil que seja a dor da perda, o enfrentamento é necessário, pois é a partir do combate ao luto que o sujeito poderá fortificar-se e construir novos significados para seguir vivendo.

Ainda não é possível quantificar os malefícios que este período de dor e desesperança causou na humanidade. Camus ajuda-nos a pensar sobre isto, quando escreve “a Peste”:

Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio. (P. 40)

Em seu livro vencedor do prêmio Nobel, Camus traz para os leitores as situações difíceis vividas pelos habitantes de uma pequena cidade, no interior da França, onde os acontecimentos retratados servem de inspiração para compreendermos que o luto precisa de um tempo, sendo mais aceitável vivê-lo, quando entremeio à morte, existe a entrega daqueles que se vão.

Na pandemia isto não aconteceu. Não era possível velar o moribundo. Não foi permitido a presença de acompanhantes. Uma vez que o doente entrava para o isolamento no hospita, ele permanecia sozinho, rodeado pela incerteza de que se retornaria ou não para o convívio com os seus. Sendo que para os familiares, permanecia o medo de não mais poder abraçar e estar com os seus – pai, mãe, irmãos, filhos, amigos…

A fim de suavizar a não presença dos familiares, os profissionais da saúde possibilitavam as visitas online, que certamente amenizavam a solidão e consolavam os que estavam em casa. Há relatos de que, no momento da intubação, o paciente tinha o direito de se despedir de seus familiares, fato este que, certamente, tornava o processo mais doloroso, uma vez que o ato da despedida é sempre algo difícil.

Pode-se pensar que o luto do invisível está relacionado a não poder acompanhar o processo da partida do outro. Considerando que ficar excluído de participar efetivamente para diminuir a dor daqueles que amamos causa-nos profunda tristeza, remorso e culpa, compreendemos, pois, que é importante, tanto para o doente quanto para os familiares, essa presença efetiva/afetiva, pois a presença cura. Se não cura o doente fisicamente, dá-lhe a garantia de que não está sozinho. Estar com o doente pode vir a facilitar o trabalho de luto, possibilitando a conclusão do processo e liberando o enlutado para investir em novas conexões.

Espiritualidade como força para os que ficam

É importante entendermos que a espiritualidade é parte da vida. Independentemente de uma prática religiosa, as pessoas podem desenvolver níveis altíssimos de espiritualidade, dado que ela se caracteriza como consequência da busca interior que cada um penetra. As realidades que tocamos também influenciam na construção da vida espiritual, pois somos seres constituídos das histórias que em nós habitam.

É, certamente, sofrido lembrar-se deste momento da história em que a humanidade sofreu coletivamente dor, tristeza e desesperança. Como fazer para seguir adiante? Como superar a falta dos amores levados pela pandemia? O desafio é cotidiano. Não há exatamente uma resposta para essas e tantas outras perguntas. Mas há caminhos.

Entre as estratégias de elaboração do luto encontramos a R/E, que pode ser uma resposta ao sofrimento, tanto oferecendo explicações sobre esse fenômeno, como abrindo a oportunidade de que tal vivência, sendo explicada dentro de uma inteligibilidade mais porosa ao sujeito, possa promover conforto e acolhimento diante da impossibilidade de reversão desse quadro (P. 10).

As vantagens de viver no século em que a tecnologia facilita encontros, os meios de comunicação digitais foram instrumentos importantíssimos que proporcionaram a aproximação e a presença, ainda que virtual, nos ritos fúnebres do ente querido. É fundamental para os familiares a participação nos ritos de despedida, pois isto pode vir a facilitar a vivência e o enfrentamento neste momento de luto, ao mesmo tempo em que pode ensejar o entendimento e a entrega dos que se foram.

Neste sentido, a espiritualidade pode ser um caminho de apoio e consolação, no enfrentamento do luto em razão da força que essa experiência proporciona àqueles que a cultivam. Nos momentos de desolação, a espiritualidade pode ser um canal de conforto e esperança, oferecendo suporte e produzindo o alívio da dor e da saudade.

Sabe-se que para a morte não há explicação. Por mais que tentasse explicá-la, a morte sempre deixa um espaço vazio na vida dos que permanecem. Vazio este que jamais será preenchido, pelo motivo de que cada ser é único e irrepetível. Dito isto, a espiritualidade pode ser uma via de superação do luto, pois motiva o indivíduo a ter esperança e a encontrar um novo sentido para continuar a sua jornada.

Considerações finais

A escrita deste artigo possibilitou ampliar a visão sobre os meios de superação do luto, tendo a espiritualidade como um dos mecanismos de suportação do processo. Compreendemos que perdas são sempre doloridas. No entanto, há diferentes tipos de perdas, assim como diversas formas de vivê-las. Aqui, apresentamos a espiritualidade como um dos tantos caminhos de atravessamento do luto.

No entanto, embora sendo algo praticado por muitos, o ser humano não conhece profundamente a sua dimensão espiritual. É de suma importância que os profissionais que prestam assistência diretamente às pessoas enlutadas, conheçam mais sobre os benefícios que a espiritualidade produz e comecem a adotar em suas práticas de assistência algumas estratégias de vivências espirituais como suporte no trabalho de elaboração do luto.

Segundo o que foi apresentado no decorrer do artigo, a pandemia da covid/19 foi um período difícil para todos. Teve-se de lidar com isolamentos, misérias e a morte de um modo real. Em meio a um panorama de medos e incertezas, a espiritualidade tornou-se força, veio como uma faísca apontando caminhos e oferecendo alento em meio à dor e a certeza de que quem morre viverá para sempre naqueles que permanecem.

Referências

A RELIGIOSIDADE/ESPIRITUALIDADE COMO RECURSO NO ENFRENTAMENTO DA COVID-19 – disponível em <<http://www.seer.ufsj.edu.br/index.php/recom/article/view/3723/2459>> acesso: 10 de julho 2022.

BÍBLIA SAGRADA. Livro: Gênesis, 1:3. Tradução Oficial da CNBB. 2.ed. Brasília: CNBB, 2019.

FREUD, S. Luto e melancolia (1917). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 249. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud).

MANO, Raquel de Paiva. O sofrimento psíquico grave no contexto da religião protestante pentecostal e neopentecostal: repercussão da religião na formação das crises do tipo psicótica, 2010. 178 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2010.

             Maria Renata da Cruz -Psicóloga clínica e educacional formada pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), com extensão em “Clínica Interdisciplinar dos Problemas do Desenvolvimento Infantil” (Centro Lydia Coriat). Especialização em Saúde Mental (Faculdade Salesiana) e Pós-graduação em Educação Especial (UNOPAR).

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