CUIDANDO DE SI, DO OUTRO E DE NÓS.

Maria Renata da Cruz[1]

“Mais do que um ato singular ou uma virtude ao lado das outras, o Cuidado é um modo de ser, isto é, a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: é um modo de ser-no-mundo que funda as relações que se estabelecem com todas as coisas” Leonardo Boff (teólogo e filósofo).

Para falar de cuidado somos convidados a pensar primeiramente em nós, como primeiros necessitados de cuidados. O cuidado perpassa a vida em todas as suas dimensões. Aqui iremos falar do cuidado humano, mas somos conscientes que o humano há um universo em si do qual ele faz parte e de onde ele se originou.

Neste diálogo traremos as ideias de Boff, do qual apreendemos os conceitos sobre cuidado e de como cuidar. Neste sentido vale a pergunta: O que é o cuidado? Por que cuidamos e para que cuidamos? Podemos ser cuidados? Como nos sentimos quando temos que ser cuidados? Como é a relação e como acolhemos aquele que nos cuida?

O cuidado remete à palavra latina cura (ou coera), usada de forma erudita também em português: cura significaexatamente cuidar e tratar, como se pode ler nos dicionários: “Os nossos maiores curavam (cuidavam, se preocupavam mais de praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas” (Alexandre Herculano)[2].

Sobre a ética do cuidado, Boff nos fala: Mais do que um ato singular ou uma virtude ao lado das outras, o Cuidado é um modo de ser, isto é, a forma como a pessoa humana se estrutura e se realiza no mundo com os outros. Melhor ainda: é um modo de ser-no-mundo que funda as relações que se estabelecem com todas as coisas[3].

A partir do conceito, percebe-se que cuidar faz parte da dinâmica natural da vida. Todo ser que vive e respira, cuida e precisa de cuidados. Não há existência de vida sem cura, não existe ser humano que não necessite de cuidados. É desta reciprocidade que se faz o humano. “O cuidado não se esgota num ato que começa e acaba em si mesmo. É uma atitude, fonte permanente de atos, atitude que deriva da natureza do ser humano”[4].

Dito isto, compreendemos que se o cuidado perpassa tudo no humano, os afetos também se constroem e se cultivam nesta relação de cuidados. Para Donalt Winnicott a pessoa da mãe tem um papel fundamental nessa dimensão, pois é a partir da relação do bebê com a mãe que o cuidado vai tomando forma. Por este motivo é necessário para o bebê já ao nascer a presença e o contato com mentes saudáveis para que o mesmo possa ir internalizando os sentimentos tão necessários a condição humana. Não se descarta falhas na relação, até mesmo porque toda relação é falha. E, segundo, Donalt Winnicott esta falha faz do bebê um ser humano capaz de relacionar-se e construir-se como sujeito de desejos.

Compreendendo de outro modo, “toda obra do homem só é humana na medida e enquanto sabe cuidar do humano no homem”[5]. A partir desta afirmação de Boff, somos levados a pensar o quão é necessário a presença do outro, do ser que se fez sujeito na formação de um outro. Tudo está em relação. As coisas só têm nome porque há um outro que a nominam e o Re-conhecem como tal. Assim o humano só é humano a partir do reconhecimento e do cuidado do outro.

Retornando a uma de nossas perguntas: para que cuidamos? Seria prático respondermos: cuidamos pela necessidade de cuidados. Mas nós sabemos que além do nosso egoísmo em querer receber de volta aquilo que oferecemos, há no humano a capacidade de transcender ao amor gratuito. O cuidado na sua origem é gratuidade. Prova disso, com raras exceções, são os cuidados maternais. Ao perceber-se mãe, a mulher reúne em si todos os cuidados devotados a sua “cria”; e por mais que um filho nunca reconheça e agradeça, o amor maternal é capaz de nunca se negar aos cuidados de um filho.

É justamente a partir dos primeiros cuidados e do reconhecimento do sujeito como tal que nasce a subjetividade. Ela é o conjunto de característica de um sujeito, aquilo que é pessoal, individual e singular. É nossa vida interior. “É o mundo de ideias, significados e emoções construídos internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de sua experiência e história de vida, e de sua constituição biológica”. (BOCK, 2002, p. 28)[6]. Não há subjetividade se primeiramente não existiu o cuidado, o acontecer psíquico que nasce do crédito do outro em nós.

O humano em nós vai sendo moldado “das e nas” experiências adquiridas ao longo da existência. O modo como cuidamos do outro revela em parte como nós cuidamos de nós mesmos, da nossa existência, dos nossos sonhos… daquilo que acreditamos. Cuidar de si mesmo é tão crucial e necessário quanto cuidar do outro. Talvez isto se dê, justamente porque o cuidado devotado a si mesmo envolve necessariamente a relação com o outro, o deixar-se cuidar.

O cuidado básico é a conquista do senhorio sobre si mesmo, que fundamentalmente consiste em criar um projeto de vida consistente que canalize e dê rumo a todas estas pulsões[7]. Algumas merecem mais cuidado e precaução por causa de efeitos nocivos, como por exemplo a vontade de posse, de acumulação e de poder sobre os outros. Cada um deve aprender a renunciar no sentido de uma ascese que liberte de dependências e crie a liberdade interior, um dos dons mais preciosos da existência humana[8].

A proposta de uma subjetividade que cuida de si leva justamente a preocupar-se com o outro. A pensar mais no coletivo, não só no coletivo da própria família ou do próprio trabalho, mas remete a uma coletividade maior, que abrange mais e que abarque o mundo inteiro. Leonardo Boff vai muito além, quando em seu livro “saber cuidar – Ética do humano – compaixão pela terra” nos fala da ligação do humano com a natureza e da sua responsabilidade para com tudo aquilo que vive. O próprio tema da água, do meio ambiente, do global. A questão é sentir com o outro. O universo é um todo e nós somos parte dele. Como encontrar a partir de nós mesmos formas e maneiras de viver isso? Ou seja, como encontrar um modo de saber cuidar de si mesmo e do outro?

Saber cuidar é um desafio e implica necessariamente em aprender a cuidar de si e do outro. Quando conhecemos a nossa realidade, descobrimos possibilidades e limitações, somos sabedores daquilo que podemos realizar. É visível que o cuidar é exigente. Requer de nós energias que às vezes não estamos tão dispostos a oferecer ao outro. Isso nos revela que somos sujeitos e que como tal somos também limitados ao cansaço e as intempéries inerentes a nossa condição humana. Sentimo-nos sós. Precisamos ser cuidados, caso contrário, nossa vontade de cuidar se perde. Saber cuidar implica saber olhar o outro como uma totalidade indivisível (percepção holística) “Holos”: total. Saber cuidar implica em ver o outro como um OUTRO (alteridade), não como uma COISA (objetificação). Implica uma relação do tipo “EU-TU” ao invés da relação “EU-ISSO”. “Alter”: outro. Saber cuidar implica ser afetado pela dor do outro e se importar com seu sofrimento (compassividade). A compaixão ultrapassa a empatia, na medida em que nela há um desejo e uma atitude genuína de aliviar o sofrimento do outro. A empatia pode ser descrita apenas como a percepção da perspectiva emocional ou psicológica do outro. “Compassione”: com paixão[9].

Perceber-se como protagonista e escritor de si mesmo nos abre a possibilidade de ser um humano melhorado. Uma pessoa capaz de entender e de viver a complexa realidade humana em todas as suas dimensões. É dessa complexidade que surge um “nós”. O humano se faz e se refaz à medida que se compreende como parte de um todo, do cosmo, do universo, de si mesmo e do outro. O cuidado existe pelo “eu”, pelo “tu” e pelo “nós”.

A falta dele faz do ser humano frágil e vulnerável a tudo aquilo que o cerca. As doenças psicopatológicas surgem aí; onde não existe cuidado há um caos, há o não-ser, o não sujeito. Na contemporaneidade está sendo doído para o homem entender a si mesmo, nunca foi tão difícil lidar com aquilo que nos fere. Falar sobre as dores, nomear o oculto em nós mesmos não é fácil devido ao apelo que a cultura atual nos faz: ser feliz! Eis um desafio ingente: o de cuidar de nossa alma interior. Cuidar dos sentimentos, dos sonhos, dos desejos, das paixões contraditórias, do imaginário; das visões e utopias que guardamos escondidas dentro do coração. Como domesticar tais forças para que sejam construtivas e não destrutivas? Em que sentido de vida ordenamos todas estas dimensões? O cuidado é o caminho e oferece uma direção certa[10].

Lidar com a dor também é saber cuidar. Não seremos evoluídos o bastante enquanto não aprendermos a senti-la. No entanto, não é suficiente somente sentir, mas transformar, canalizar, transcender… Nesta travessia, a qual deve ser cotidiana há inúmeros desafios diante do qual devemos dar respostas que se concretizam nas decisões que tomamos. Há sempre um sentido, e ele fica mais visível e mais querido quando tomamos a difícil decisão de cuidar de vidas.

[1] Psicóloga, Especialista em Saúde Mental. CRP07/21853.[2] LB – O CUIDADO NECESSÁRIO, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, P. 28. [3] LB – SABER CUIDAR: Ética do humano – compaixão pela terra. 10 ed. São Paulo (SP): Vozes; 2004. P. 92. [4] LB – O CUIDADO NECESSÁRIO, Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, P. 28. [5] LB – O CUIDADO NECESSÁRIO, P. 54. [6] BOCK, Ana Mercês Bahia, FURTADO, Odair, TEXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudo da Psicologia. 13. ed., São Paulo: Saraiva, 2002. P. 28. [7] Energias sublimadas [8] O CUIDADO NECESSÁRIO; P. 181. [9] SABER CUIDAR, P. 128. [10] SABER CUIDAR, P. 10.

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