A reflexão bíblica desta semana é a partir de um texto bastante conhecido, o de Mateus, capítulo 14, versículos 13 a 21, a saber: a multiplicação dos pães. Importante ler o texto antes de seguir nesta reflexão.
Estamos vivendo tempos de crise sanitária, agravada com a pandemia do novo coronavírus, mas também crise política, econômica e, porque não dizer, social, cultural e religiosa, já que a pandemia está nos levando a questionar e repensar modos de vida, relações interpessoais e com a natureza, modelos econômicos e políticos. Toda crise é reveladora e aponta saídas. Revela, tira o véu, escancara tantas mazelas que necessitam de respostas urgentes.
A sociedade da época de Jesus, em sua organização nas diversas esferas, escondia também suas mazelas. Estruturas iníquas de poder político e religioso oprimia o povo e causava bastante sofrimento. A missão de Jesus era tirar o véu dessa realidade e transformá-la a partir das pessoas. O texto da multiplicação dos pães, que na verdade deveria chamar-se de partilha dos pães, revela bem as injustiças dessa época, o sofrimento, os anseios do povo e os caminhos para a transformação.
A missão dos cristãos e cristãs é orientada, prioritariamente, pelas palavras e gestos de Jesus. Portanto, o pão deve estar na centralidade dessa missão, pois esteve sempre presente na atuação de Jesus, desde o início. Sua vida se inicia dentro de uma padaria, pois Belém significa Casa do Pão.
No texto em reflexão, o povo que buscava Jesus tinha anseio que todo o sofrimento pudesse acabar e estava com fome. E não era pouca gente! Era uma multidão. O texto fala em cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças. Ora, numa sociedade patriarcal, mulheres e crianças não são contadas. Hoje esse véu da invisibilidade, da opressão e da violência precisa ser tirado e rasgado. Não podemos mais contar dessa forma, fazendo uma subtração violenta, machista.
Se o povo estava com fome, era preciso fazer algo. Jesus não aceita a indiferença, a omissão, manifestadas na atitude dos discípulos que dizem a Jesus para despedir o povo, a fim de que pudesse ir comprar comida em algum lugar (cf. v. 15). É a visão de mercado. Talvez esse povo nem tivesse com que comprar comida e, se Jesus tivesse despedido às pessoas, iram permanecer com fome. Os discípulos queriam se livrar do problema, na verdade.
Jesus, no entanto, chama os discípulos à responsabilidade social: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (v. 16). Acabar com a fome das pessoas é sim parte essencial da missão cristã e todos que assumem essa missão devem estar empenhados nesta tarefa. Nestes tempos de pandemia, a fome de milhares de pessoas está escancarada. Como dizia um canção antiga de nossas comunidades, “o ganho mesquinho não dá pra viver”. Quem ganhava pouco, com o distanciamento físico, passou a ter maiores dificuldades e a passar fome. Quem não tinha nada, piorou bastante.
Lembro de ter iniciado meu trabalho pastoral no sertão do Ceará, em Madalena, ajudando às irmãs Apóstolas da Sagrada Família na distribuição de cestas básicas, em 1998. A partir de 2002, através de uma maior atuação da sociedade civil organizada e pela implementação de diversas políticas públicas para erradicar a fome e a pobreza, de geração de trabalho e renda, o contexto foi mudando no Brasil e o país aos poucos foi superando essas mazelas. Muito ainda precisava ser feito, mas não é possível negar os avanços. Em 2014 o Brasil sai do Mapa da Fome da ONU. No entanto, a partir do golpe sofrido pela presidenta Dilma em 2015 e à ascensão ao poder de grupos políticos e econômicos que historicamente são causadores da fome, essa realidade volta a alcançar níveis mais críticos. E, mais uma vez, é preciso nos empenharmos em campanhas de aquisição de alimentos, material de limpeza e higiene pessoal para as famílias necessitadas.
Não podemos mais ficar calados, omissos ou com meias palavras diante desse contexto. É preciso, literalmente, dar nome aos bois, denunciar os causadores dessas injustiças. Isso é profecia tão necessitada em tempos de crises profundas. Não é possível mais pisar em ovos, fazer uma pastoral no banho-maria, com medo ou indiferentes a tudo o que está acontecendo. Não é possível aceitar que 851 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) não tenham o direito à segurança alimentar e nutricional garantido.
É urgente que a partilha aconteça em todos os níveis: a partilha do pão, da terra, da água. A partilha dos investimentos, das decisões políticas e sociais. Toda concentração gera morte e vai contra o projeto de Deus. Só a solidariedade pode transformar este mundo.
Como no Brasil, um país majoritariamente cristão, pode a fome, a pobreza, as injustiças serem realidades tão presentes? Algo está errado com a política, com a economia, com a religião, com as pessoas.
A orientação de Jesus, “Dá-lhes vós mesmos de comer”, continua atual, é ainda um imperativo. Dessa forma, convidamos a você a refletir sobre sua ação no mundo, a partir destas três perguntinhas:
- Eu estou empenhado/a em exigir dos governantes que cumpram o papel de serem guardiões dos direitos dos povos?
- Eu estou empenhado/a em contribuir com organizações sociais, comunitárias que lutam pelos direitos das pessoas, especialmente daquelas em situação de pobreza e miséria, vítimas da violência e do preconceito?
- Eu consigo partilhar aquilo que tenho com quem precisa ou levo a vida em acumular coisas, consumir de forma irresponsável, indiferente às necessidades dos irmãos e irmãs?
Nas Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs) nós aprendemos que o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada. Na verdade, os pobres já sabem disso há muito tempo, já sabem que esse é o caminho.
Que Jesus, o Pão da Vida, nos fortaleça na solidariedade, na compaixão e no serviço aos irmãos e irmãs maltratados por tantos projetos de morte.