INCREDULIDADE OU FÉ EM PROCESSO DE MATURIDADE?

O texto sobre o qual faremos esta breve e simples reflexão é extraído do quarto Evangelho, Jo 20,19-29. Em onze versículos o autor narra dois encontros com o Ressuscitado com um intervalo de oito dias entre eles. Além disso, nestes onze versículos o autor consegue conduzir o seu leitor a um processo de maturação da fé, tarefa que se necessita uma vida inteira para ser realizada. Como se tratam de dois encontros, dividiremos o texto en duas partes para uma melhor compreensão do mesmo.

Primeira parte

No v. 19a temos uma indicação de tempo: «À tarde desse mesmo dia, o primeiro da semana». É situado, portanto, na tarde do domingo, o qual para os judeus já era um novo dia. Mas para o evangelista ainda se trata do mesmo dia da ressurreição, dia em que se inaugura a nova era da vitoria de Jesus sobre a morte. A técnica literária de João de uma jornada completa é significativa, como podemos ler nos primeiros capítulos do Evangelho[1]. Isto mostra também a importância desse dia para o autor do evangelho, pois no v.26 ele diz que Jesus veio novamente oito dias depois, ou seja no domingo seguinte. A expressão «desse mesmo dia» nos remete ao episódio anterior do sepulcro vazio e aparição de Jesus a Maria Madalena».

Logo em seguida o autor indica o lugar, «estando fechadas as portas onde se achavam os discípulos», embora não especifique, faz pensar que estavam em uma casa o que mais adiante no v. 26 será especificado. O evangelista não deixa passar os detalhes, apesar de serem evidentes, informa ao leitor inclusive a situação emocional, «medo dos judeus».

O autor utiliza o verbo ηλθεν (ερχομαι), «Jesus veio». Se poderia traduzir «Jesus entrou», mas é significativo que a tradução seja «Jesus veio», pois antes o evangelista já havia dito que as portas estavam fechadas. Isso pode ser banal se pensamos que Jesus  depois da ressurreição não necessitava de portas abertas para entrar, porém tentando seguir a intuição do autor que ama expressar-se simbolicamente para que o leitor possa extrair um ulterior significado, podemos pensar que este Jesus que veio ou que chegou, nunca se ausentou do meio deles, sua presença sempre foi constante.[2]

No texto é especificada a posição de Jesus, «pondo-se no meio deles». A expressão utilizada no texto original é «ἔστη» do verbo «ἵστημι» que significa «está de pé», Ele é o ressuscitado e quer apresentar-se aos discípulos como tal.

Jesus os saúda com a saudação habitual dos judeus: «a paz esteja convosco». Habitual sim, mas que naquela ocasião e para o texto torna-se significativa e necessária, já que o evangelista colocou muito en relevo que os discípulos estavam com medo, salientando que estavam con as portas fechadas. Naquele momento, além de ser uma saudação, a paz era uma necessidade para eles.

O v. 20 inicia trazendo um detalhe muito importante: «mostrou-lhes as mãos e o lado». É importante porque se conecta à segunda parte do texto no v.25 quando Tomé exprime a necessidade de ver e tocar as mãos e o lado de Jesus e ao v.27 quando Jesus aparece oito dias depois e mostra a mão e o lado.

No v.20b se exprime mais uma vez o estado emocional dos discípulos, «ficaram cheios de alegria por verem o Senhor», contrapondo-se ao medo expresso no v.19.

No v.21 Jesus deseja-lhe novamente a paz, confirmando assim quanto foi dito anteriormente sobre a necessidade desta paz e entrega-lhes a missão que Ele recebeu do Pai: «Como o Pai me enviou, também eu vos envio». Portanto un versículo com uma temática vocacional de envio. Isto quer dizer que fazer a experiência da presença do Ressuscitado significa comprometer-se em levar adiante a missão que Jesus recebeu do Pai. Qual é esta missão? Podemos encontrar uma pista no mesmo Evangelho de João. «Pois Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele» (Jo 3,17). Portanto a missão de Jesus é salvar o mundo. Obviamente Ele é o único Salvador, ninguém pode salvar a não ser Jesus e ele veio salvar do pecado, portanto como veremos en seguida os discípulos recebem o Espírito Santo e com ele o mandato de perdoar os pecados e assim são associados à missão de Jesus. Não são salvadores, mas se tornam, mediante a fé, testemunhas da salvação realizada por Jesus.

«Dizendo isso, soprou sobre eles e lhes disse: “Recebei o Espírito Santo» (v.22). A este ponto somos transportado a Gênesis quando Deus sopra sobre o homem. «Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente» (Gn 2,7). Talvez podemos pensar a uma nova criação que o Ressuscitado realiza nos discípulos, mas quer transmitir esta nova vida a toda humanidade ou a todos aqueles que receba este dom mediante o anúncio, realizando-se assim o que o Ressuscitado diz a João no livro do Apocalipse: «O que está sentado no trono declarou então: “Eis que eu faço novas todas as coisas”» (Ap 21,5).

O v. 23 especifica a missão que lhes foi dada naquele momento. «Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; aqueles aos quais retiverdes ser-lhes-ão retidos». Em Gênesis o sopro divino transmitiu ao homem vida, dignidade e autoridade sobre os seres criados. Eles receberam de Deus o mandato de cuidar da criação e assim manter a vitalidade. Portanto o sopro como sinal de vida pode ser entendido como força que se renova cada vez que é transmitida ou compartilhada. Aqui os discípulos recebem o Espírito Santo através do sopro do Ressuscitado, o qual agora está no meio deles transmitindo esta nova vida que, a sua vez eles devem transmitir aos demais através do perdão dos pecados. O pecado, de fato, é o pior causador de morte. O Espirito recebido mediante o sopro restaura a vida, como o autor nos faz constatar no mesmo evangelho: «Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus» (Jo 3,5).

A pandemia é uma tremenda realidade de morte, como aos discípulos naquela ocasião, o medo nos obriga a ficarmos em casa, a manter a distancia, a reinventar uma maneira de prosseguir. Todos falam de impacto econômico, mas quem já pensou no impacto emocional e relacional que estamos vivendo? Somos obrigados a distanciar-nos de quem está fora e a super-conviver com quem está dentro de casa. Assim sendo, além do medo, explode também a ansiedade acompanhada da incerteza e insegurança.

Em casa talvez tenhamos que estabelecer relações, a olhar-se, a compartilhar sentimentos como o medo e a ansiedade que nos comuna e, em alguns casos teremos que aprender a perdoar e reconciliar. São tarefas complexas as quais não será possível realizá-las sem um suporte re-vitalizador ou, porque não chamar «sopro».

Nos diz o texto que “os discípulos ficaram cheios de alegria por verem o Senhor”. Quem está en casa com você? Quem você está vendo? A permanência em casa, embora por medo, proporcionou aos discípulos a visita do Ressuscitado. Inusitadamente Jesus vem. Os que se encontravam em casa puderam experimentar o efeito da surpresa: a alegria de ver Jesus.

Segunda Parte

«Tomé não estava com eles quando veio Jesus» (v.24). Dá a entender que ele não estava no lugar onde se encontravam os outros discípulos, mas este detalhe não é especificado no texto. Parece banal e evidente que se refira ao lugar físico, mas não, pois em um texto qualquer palavra ou ausência dela pode ser significativa. É possível que fisicamente ele estivesse ali. Então porque ele não viu quando veio Jesus? A expressão “não estava com” (οὐκ ἦν μετ᾽), parece querer aludir algo muito mais profundo que vai além da materialidade.

Se trazemos para a nossa realidade atual será bem fácil entender. Neste tempo de pandemia onde todos estão em casa se pode notar muito bem a diferença entre estar fisicamente e estar com. As vezes uma situação de angustia, de dor, de ansiedade desvia a nossa atenção do que de fato é real ou do que as vezes costumamos chamar de momento presente e passamos a viver do efeito emocional que a situação produz em nós.

Jesus havia morrido, esta era a realidade para Tomé e isso significava para ele uma tragédia, gerando nele insegurança, angustia, desespero, falta de sentido, situação essa que subtraiu sua presença do meio dos demais.

Diante da afirmação dos seus companheiros, «Vimos o Senhor!» Tomé se posiciona con radicalidade: «Se eu não ver em suas mãos o lugar dos cravos se não puser meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu lado, não crerei» (v.25). Para o discípulo não bastava um mero ver, ele queria tocar, examinar os sinais da paixão[3]. Mas quem de fato ou o que Tomé queria ver? Jesus ressuscitado? Ou os sinais da morte do Mestre? Me ponho a pensar o que significou para Tomé aqueles sinais, os cravos, as feridas, o lado aberto.

«Oito dias depois, achavam-se os discípulos, de novo, dentro de casa». Interessante notar que não diz mais que as portas estavam fechadas como na primeira parte, mas que estavam dentro de casa (ἔσω). A expressão indica interioridade, intimidade. E o “medo” da primeira parte já não vem citado.

Logo depois o autor diz que Tomé estava con eles. Se torna pertinente o detalhe que só depois que vem indicada a presença de Tomé, o evangelista diz que as portas estavam fechadas. Talvez seja uma simbologia para sinalizar que Tomé ainda não se abriu ao evento da ressurreição, pois a experiência de ter visto o seu Mestre cravado na cruz tendo o lado aberto ainda não foi superada para poder assim abrir as portas para o evento inaudito: Jesus ressuscitou, está vivo para sempre! A cena é idêntica à primeira: portas fechadas, Jesus vem e os saúda desejando-lhes a paz. Logo dirige-se a Tomé, «Põe teu dedo aqui e vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê» (v.27). Jesus realiza o desejo de Tomé. Ele toca e vê as feridas do seu Mestre. Aquelas feridas que causou dor e morte, agora as vê em um corpo glorioso. «Mas ele foi trespassado por causa das nossas transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades. O castigo que havia de trazer-nos a paz, caiu sobre ele, sim, por suas feridas fomos curados» (Is 53,5). E ainda São Paulo afirma: «Aquele que não conhecera pecado, Deus o fez pecador por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos  justiça de Deus» (2Cor 5,21). Sem querer forçar o texto, mas apenas colhendo a intuição que flui do mesmo, podemos deixar que circule no coração a pergunta: Será que Tomé, vendo e tocando aquelas feridas no corpo glorioso do Mestre, reconheceu as suas próprias feridas?

Algo a notar aqui é a importância que o verbo ver (ὁράω) ocupa no texto, de fato vem a ser utilizado seis vezes. O autor do texto, portanto deixa claro que não só para Tomé, mas também para os outros discípulos, o “ver” assume uma grande importância. Porém esta importância não é somente para o presente texto, mas para toda a literatura de João. Pensemos no Apocalipse por exemplo, além de ser o relato de uma visão, traz circunstancias pontuais onde o ver assume um importante significado. «Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me vi sete candelabros de ouro e, no meio dos candelabros, alguém semelhante a um filho de homem… Ao vê-lo caí como morto a seus pés. Ele porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando: “não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente» (Ap 1, 12-13.17-18a). João descreve a sua reação espontânea diante de algo inesperado[4]. O autor do quarto Evangelho também descreve a reação de Tomé diante do evento inaudito que acontecia ali diante dele, evento este que o levou a uma profissão de fé que é o principal objetivo deste processo que acompanhamos em todo o texto.

De fato, a relevância do “ver” vem logo ultrapassada pelo “crer” (πιστεύω). Não eliminou sua importância no texto, apenas deu cumprimento ao que era a intenção do autor: a Fé. Esta intenção ou objetivo do autor do texto se realiza concretamente en nossos dias cada vez que damos espaço para que este processo progrida e cheguemos à conclusão de Tomé: Jesus é meu Senhor e meu Deus até chegar a bem-aventurança (μακάριος) dos «que não viram e creram» (v.29). A primeira conclusão do quarto Evangelho nos confirma este objetivo: «Esses, porém, foram escritos para crerdes que Jesus é o Cristo o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome» (Jn 20,31). Portanto o Evangelista escolheu algum sinais para escrever, os quais ao serem lidos comuniquem uma representação «visual» que convida ou leva a um bem-aventurado ver-crer[5].

De tudo o que viemos dizendo e refletindo podemos concluir que no processo de maturidade da fé todos encontram acolhida no coração de Deus: os que apenas viram e creram; os que para crer precisam ver e tocar e os que creram sem ver. «Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha vida eterna» (Jo 3.16).

[1] Cfr. U. Vanni, Il tesoro di Giovanni, 220. [2] Idem. [3] Cfr. J. Oniszczuk, Incontri con il Risorto in Giovanni, 102. [4] J. López, Jesús resucitado y el profeta de Patmos. Análisis retórico de un encuentro (Ap 1,9-20), 163-182. [5] Idem.

Ir. Margarida Felix, natural de Boa Viagem (CE), pertence à Congregação Pobres Servas do Preciosíssimo Sangue – Cenáculo da Caridade. Estudou filosofia, teologia e mestrado em Teologia Bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma, IT). Atualmente é missionária no Paraguay e se dedica à formação das postulantes de sua Congregação e a pastoral vocacional, além de assessorar a pastoral da juventude de sua paroquia. Atua como docente no Instituto de Vida Religiosa e Centro Bíblico San Pablo, no Paraguai.

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