LAÇOS E DESLAÇOS: UMA REFLEXÃO ACERCA DAS RELAÇÕES.

cordão quase rompido para recordar a fragilidade dos vínculos

Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu[1].

Para início de conversa pensamos que é importante justificar o motivo do tema “Laços e Deslaços”. Em meio a uma pandemia do COVID-19[2], o planeta foi convocado a permanecer em casa. Ficar em casa não por um motivo qualquer, mas justamente para protegermos nós mesmos e aqueles que nos são caros de um perigoso e/ou mortífero contágio. A pandemia é a justificativa real pela qual traçamos uma reflexão acerca dos relacionamentos. Então, lançamos um olhar crítico sobre o modo como nós, homens e mulheres do século XXI estamos vivendo o isolamento social, deixando vir à tona o nosso isolamento emocional/afetivo.

Como todos sabemos a humanidade vem passando por transformações e avanços tecnológicos cada vez mais velozes. O homem[3] hoje mantém-se numa relação de contato interplanetário. Esse mundo novo é novo em todos os sentidos. Mas, sobretudo, no modo de viver e de se relacionar com as pessoas e com as novas ferramentas produzidas para alimentar a sociedade de consumo. Pasmem! Precisamos manter o capitalismo em expansão e para isso nós mesmos homens, produzimos a todo o momento novos produtos a fim de criar necessidades e gerar crescimento exponencial da economia de grandes potências mundiais.

Tanto é louvável quanto querido o avanço da humanidade. Apesar de sabermos que há tantos que ainda restam à margem de uma sociedade injusta e desigual, não podemos fechar os olhos para aquilo de positivo que a ciência e a técnica têm proporcionado. No entanto a pergunta que não quer calar: o que tem a ver relações com globalização? Como isso responde aos enigmas que muitos profissionais da saúde mental relatam em apresentações de estudos de casos: conflitos de casais, pais, filhos, amigos, namorados, amantes…? Relações frágeis que cotidianamente são incontáveis os casos que chegam ao extremo, como por exemplo, ao feminicídio, ao suicídio.

Em meados do século XX, 1927, Freud em sua obra “O Mal-Estar na Civilização”, revela o seguinte:

É impossível fugir à impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação – isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. (Freud, 2006, p. 73)[4].

Podemos deduzir a partir do que Freud propõe em o Mal-Estar na Civilização que as relações estão permeadas pelo desejo do homem em satisfazer o seu próprio ego. Conforme essa ideia, toda relação tem em sua base o desejo de auto-satisfação. Daí é possível concluir que muitas relações de abusos e submissão estão ligadas aos desejos inconscientes de sentir-se visto, amado e desejado pelo outro. Portanto, mesmo estando numa relação abusiva, o ego é capaz de distorcer essa imagem tornando para o inconsciente possível algo que humanamente não é aceitável.

A sociedade atual tem insistido sobre o empoderamento do sujeito. Essa palavra contemporânea vem quebrar os paradigmas de uma sociedade escravista, ao mesmo tempo em que dar à pessoa as condições de auto-estima para libertar-se de situações em que a sua dignidade não está sendo respeitada. Além disso, é possível compreender que numa relação objetal não há empoderamento, o que existe é alienação, permeada de preconceitos e disfarçadas de bondade a qual mantém o outro descrente de sua própria condição de objeto tornando-o refém de uma vida medíocre, fadado a sofrer por desconhecer-se como protagonista de suas próprias escolhas.

Diante disso é necessário tornar suportável o insuportável. Produzem-se mecanismos de defesas para que as relações obtenham sucesso e para tolerar a solidão. “A hipótese de um relacionamento “indesejável, mas impossível de romper” é o que torna “relacionar-se” a coisa mais traiçoeira que se possa imaginar. Mas uma “conexão indesejável” é um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que se comece a detestá-las” (Bauman, 2004, p. 14)[5].

Em seu livro “Amor Liquido”, o autor ilustra muito bem quando supõe que as relações na contemporaneidade são efêmeras. Há uma ambivalência, por um lado temos pessoas carentes que por vezes caem em armadilhas criadas pelas suas próprias necessidades afetivas, de outro, há sujeitos que por medo de ser amada/o acabam afastando-se de toda e qualquer forma de relação.

Para responder esse novo modo de relacionar-se, a internet vem como uma grande aliada encurtando distâncias e tornando as relações cada vez mais instantâneas. Essas relações são permeadas pela facilidade de se conectar e desconectar-se, dando agilidade para as pessoas saírem de suas relações quando as mesmas não respondem mais as expectativas. É difícil acreditar que a era da globalização afetou as relações a esse nível. Hoje se preza pela felicidade rápida e pela satisfação dos desejos, relações menos duradouras-comprometedoras. Tanto relações de afetos quanto relações humanas como um todo.

Na era das comunicações digitais, as redes sociais entram cada vez mais nas relações como uma proposta avassaladora de preencher o vazio e o medo de estar só. Redes sociais, smartphone, celulares, tablet… Tudo isso vem como uma necessidade de vencer a solidão sem pagar o ônus do contato físico. Assim, o homem não precisa mais isolar-se para viver a sua liberdade, porque a internet proporcionou a mais complexa dialética e complicada forma de isolamento.

O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais frequentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para poderem condensar-se em laços. Centradas no negócio à mão, estão protegidas da possibilidade de extrapolar e engajar os parceiros além do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida — ao contrário daquilo que os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos por perpetrar. Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, e também para serem rompidos. A distância não é obstáculo para se entrar em contato — mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam, idealmente, sem sobras nem sedimentos permanentes. Ela pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais que o apertar de um botão. (BAUMAN, 2004, p. 59).

Quando falamos que as relações humanas/afetivas são um paradoxo na sociedade contemporânea, não quer dizer que já não o fossem em outros tempos, mas atualmente a facilidade de acessar as redes sociais, de construir perfis (conforme desejo ser visto) em meios virtuais, escancara uma realidade difícil de ser compreendida. O homem tem dificuldade de ser empático, de colocar-se no lugar do outro, de perceber e de sentir com o outro, pois anda demasiadamente imbuído em suas próprias necessidades. O culto ao individualismo foi criando uma mentalidade completamente egocêntrica, onde o que está em jogo são as realizações individuais de cada um. Numa cultura assim, fica difícil enxergar que as pessoas que estão próximas a mim necessitam dos meus cuidados, da minha atenção.

As relações em meios virtuais é completamente o oposto de uma relação presencial (mano a mano). Dias depois em que nos encontrávamos em isolamento social, fomos notificados pela mídia de que a violência domiciliar teve um aumento significativo. É sabido que o estado emocional tende a alterações significativas por encontrar-se em meio a uma pandemia. No entanto, a violência não se deve estritamente a isso, e sim, tem raízes mais profundas. Pode estar ligada ao fato de que o ser humano anda projetando as “facilidades” de conectar-se numa realidade virtual a sua vida real.

No cotidiano é preciso vincular-se com o outro, a vida exige isso. Precisamos treinar os nossos sentidos, sobretudo, a escuta. O outro tem o direito ao meu respeito. Não posso eliminar alguém simplesmente porque a sua ideia é diferente. Nas redes sociais a falta de tolerância e o respeito pelo que vem do outro denuncia o quanto a humanidade anda adoecida. Dando a prova real de que as “Conexões são rochas em meio a areias movediças”. (BAUMAN, 2004, p. 56)[6].

No cotidiano o engajamento na relação é fundamental para manter os laços. Engajar-se é comprometer-se em suportar o que vem do outro. No entanto, longe de ser uma relação objetal[7], o engajamento se coloca como algo que lança um olhar para o outro e que consegue ultrapassar as fronteiras do próprio egoísmo para estar comprometido na construção de uma relação saudável, onde o diálogo prevaleça sobre qualquer forma de opressão.

Amar o próximo como amamos a nós mesmos significaria então respeitar a singularidade de cada um — o valor de nossas diferenças, que enriquecem o mundo que habitamos em conjunto e assim o tornam um lugar mais fascinante e agradável, aumentando a cornucópia de suas promessas. (BAUMAN, 2004, p. 72)[8].

Talvez um dos desafios para resgatar os laços humanos esteja no retorno as nossas casas. Um retorno àquilo que é essencial. Não podemos permitir que tenhamos a intimidade invadida por desconhecidos. Faz-se urgente um resgate a familiaridade, o gosto de estar com o outro. O esfriamento dos laços se dá à medida que não me relaciono e não demonstro interesse pela vida do outro, pela causa do meu próximo. É imprescindível passar da indiferença à empatia, do descartável à solidez.

É visível que se o homem não mudar os seus hábitos a humanidade não sobreviverá. As relações engloba todo o nosso ser incluindo o meio em que habitamos. Precisamos criar laços fortes, que nos dê coragem e ousadia para permanecermos firmes na tarefa de respeitar e amar os nossos irmãos.

Maria Renata da Cruz, Psicóloga, Especialista em Saúde mental.


[1] LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. P. 15 – disponível em <<https://cs.ufgd.edu.br/download/Lacos%20de%20Familia%20-%20Clarice%20Lispector.pdf>>

[2] O coronavírus (COVID-19) é uma doença infecciosa causada por um novo vírus. Ele causa problemas respiratórios semelhantes à gripe e sintomas como tosse, febre e, em casos mais graves, dificuldade para respirar. A sua principal forma de contágio é o contato com uma pessoa infectada, que transmite o vírus por meio de tosse e espirros. Ele também se propaga quando a pessoa toca em uma superfície ou objeto contaminado e depois nos olhos, nariz ou boca.

[3] Usaremos a palavra HOMEM não no sentido de gênero, mas aquilo que se refere ao ser humano.

[4] FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização.In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 16, Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. XXI. P. 73

[5] BAUMAN, Z: Tempos Líquidos: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. P. 14

[6] Amor liquido

[7] Tratar o outro como objeto

[8] Amor liquido – Bauman

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